domingo, 2 de setembro de 2007

...de Pandora

Pra quem não sabe, eu tenho umas caixas de Pandora aqui, espalhadas pela minha casa. Só que essas caixas são meio diferentes. Ao abri-las, as dores do mundo saem, flertam com suas dores e levam-nas de volta à caixa. É como o abrir e fechar de um caderno. Aqui, em homenagem a Marcos, vai um micro-conto no estilo.


Em um desses dias marcados pela solidão, dobrei a esquina da amargura e dei de cara com o diabo: sujeito belo e bem vestido; elegante, segundo os aspectos da moda contemporânea. Como se minha vida, naquele instante, de nada valesse; como se precisasse pôr à prova a minha insanidade, provocando-o, perguntei: "De que vale a vã vaidade dos hipócritas"? Enquanto sua imensa testa franzia em tom de desafio, ele retrucava: "Tanto quanto o espelho que te reflete todas as manhãs". De repente, me vi diante de um grande espelho de bordas douradas. A luz do meio-dia alimentou tais bordas -que reluziam, reluziam, reluziam... Uma voz dentro da minha cabeça sussurrava: "Incômoda a verdade à luz do dia?"
Meu reflexo me encarava através do espelho: meu rosto ficava cada vez mais cadavérico. Pude notar minhas fundas olheiras de insônia e cansaço; meus dentes amarelados do cotidiano café: é trágico o vislumbre do efêmero... Mergulhado em meu reflexo, pude assistir a todos os dias do meu tormento. Para cada sentimento reprimido no íntimo; para cada amor abandonado por faltar coragem, uma cicatriz surgia em meu rosto. Os dias em que eu não agi me fizeram quebrar todos os dedos das mãos, e no meu peito, uma cruz à sangue e fogo emergia à minha superfície. Atordoado, pensei: "Um pouco de verdade...". Aos meus olhos restaram o incontestável branco de uma cegueira irreversível. As cicatrizes, os cortes, a minha carne tosca: o meu rosto, irreconhecível: destroçado: distorcido: disforme. A agonia...
Gargalhei loucamente: enfim, havia compreendido. E o diabo, assustado, estalou os dedos no desfazer da ilusão. Chegou ao chão, onde eu me encontrava ajoelhado, e ofereceu-me um espelho de mão. Minha gargalhada cessou: recusei o espelho e levantei-me. Olhei nos olhos do diabo, que, intrigado com minha reação, perguntou-me: " De que vale o espelho que te reflete todas as manhãs"? Com ares de vitória, respondi-lhe, como riso que brota da ponta da língua: " NADA".




By Raphael Soares Bezerra. 11 de janeiro de 2007

12 comentários:

buildup disse...

o reflexo so mostra o que há por fora, e mesmo assim, so um dos lados.

e afinal de contas, quem é o diabo? ele nem te conhece pessoalmente pra falar algo sobre voce.

asadebaratatorta disse...

Nossa! Nem sei o que dizer ^^

Só pra situar esse conto num enredo, devo dizer que o personagem desafia o diabo de alguma forma. O diabo, típico sujeito com o qual as menininhas sairiam, resolve punir a ousadia do personagem com uma das piores torturas da vida, que é ver a sua própria face distorcida de tudo que vc já viveu. é olhar pro seu rosto e não reconhecê-lo esteticamente. É a materialização de todas as feridas psico-espirituais e psico-emocionais. Isso provocaria tormento a qualquer indivíduo. de forma que muito facilmente as pessoas entrariam em colapso ao ver o uqe o personagem viu. Porém, essa face na escuridão profunda não parece incomodar tanto assim o personagem... =P e a moral desse conto tem a ver com isso. cada frase está posicionada para obter o sentido desejado. ^^

Anônimo disse...

cada frase está muito bem posicionada para obter o sentido desejado. ^^

acho que uma das grandes conquistas que a gente pode ter é passar a perna nesse diabo, simpático e acolhedor, quando ele tentar vir jogar charme pra cima da gente.

esse meu diabo já tá quase no chão já. valeu a força, meu velho. ;)

Andréa disse...

já leu "O retrato de dorian gray"? vale a pena! ^^

Beijos!

asadebaratatorta disse...

às ordi, dr. marcos. ^^

E obrigado pela sugestão, dr. andréa. ^^

prussiana disse...

naõ entendi. =D

Anônimo disse...

eu conheço a história do Dorian Gray e seu retrato. muuuito interessante mesmo. o livro também deve ser. ^^

Altiere Freitas disse...

meio realismo fandasdigo...ehhe.. ei o persongem condena os hipócritas,mas no fim c v um deles... mas ri... haa.. acho q ele já havia reconhecido todas as mazelas interiores..td q o diablo..queria mostrá-lo...
heim??

asadebaratatorta disse...

Algo assim, Altiere! Ele compreendeu o quão ilusória é a aparência, ou a forma por si só. Tanto que o diabo ficou intrigado quando, depois de toda a tortura, depois dele ter visto o rosto distorcido da pior maneira, ele recusou o espelho. Qualquer pessoa ficaria desesprada com a ilusão e assim que ela se quebrasse, procuraria o primeiro espelho para ver seu rosto "normal" e ficar aliviada.

Anônimo disse...

Eu conheço alguém que não se abalaria facilmente com esse espelho distorcido ;P olá meu amigo =) como prometi, estou aqui =) Adorei o conto. Sem palavras... apenas NADA a dizer =)
Naanu

asadebaratatorta disse...

Nunca NADA foi tão acolhedor. ;D

Tamires disse...

cegueira irreversível...
como tanta coisa/cegueira na vida =p