quarta-feira, 25 de maio de 2016

Aviltante é o compasso da locomotiva
que rasga o mundo para existir.
O caminho do progresso seca a fonte da alma,
que silente se costura das máculas impostas pela desrazão.
Viaja a jato a morte, estalando o vil metal cravado no chão.
Não por acaso, mas por paixão: romance do engano, fábula da evolução:
nossos corpos seguem viagem;
nossas almas não.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Corta o vento os meus lábios.
Sela o tempo com palavras que não vou dizer.
Dorme mansa a alegria, de tão intensa calmaria, que só mesmo o desespero dirige o meu destino.
Corre milhas de avaria, a fogueira do meu ser. Consome o sangue, combustível, derrama a fonte  outrora perene, a cada chama mais marcada, mais profunda a cicatriz.
Um rio sem chuva. Um mar de sal. As vidas secas. A terra nua. A alma velha, a perecer. Tímida cólera, se agita na escuridão. Como estrela, quer brilhar para a extinção. Aos tropeços, une as forças para explodir uma vez mais. Para marcar no tempo a emoção dessas palavras que não vou dizer. A Deus.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Essa coisa engraçada é dedicada a Ruan, que me desafiou a escrever um poema sobre separação de bens =P heauiaheiaueh


Separação de bens

Desencontrados.
O vil metal entre nós.
Sórdida é a nossa cama.
Nas manchas dos nossos lençóis.

Já não somos dois:
só pode haver separação.
Só nos resta lamentar
e preparar a separação de bens

sábado, 24 de janeiro de 2015

É janeiro sem chuvas. Aos passos sobe a poeira das vidas deturpadas: não corre o Rio pelas casas no balé da renovação. Emoções sedimentares na sarjeta, no varrer dos terreiros, lutam contra o tempo, à espera da água purificadora. Ela não vem. Tudo resta, resiste, insiste sem razão.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

O Porto seguro

Era noite. As luzes da cidade, naturalizadas pelos transeuntes, eram como pequenos faróis para a imensidão do mar revolto. Referências, brilhos de motivação iluminando os sonhos dos navegantes, distantes, em constante batalha com a escuridão que inunda os olhos e assola os corações dos vivos. Pessoas, caminhando pelas calçadas, não poderiam saber o que representam os refletores, os postes, as varandas: estão perto demais para reconhecer sua importância.
Caminhamos todos os dias por essas calçadas, sem notar. Sem reverenciar as luzes e o seu valor, que nos fazem enxergar as cores do mundo, apreciar a arte da vida. E até que nossa luz interior se apague, viveremos sem noção do que são essas luzes, sempre presentes, a nos oferecer o vislumbre do possível.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Nalgum lugar em 2008.

"Qual não seria o espanto de uma dona de casa, ao receber do seu amoroso marido, um colar perfeito, reluzente de ouro e marfim? Nesse colar, feito de fios de cabelo humano, brilhariam os mais belos dentes, arrancados precocemente das mais doces crianças. É, de fato, um costume humano. Por que não cortar flores do leste e juntá-las em um arranjo? Tão suntuosa arte não seria apreciada pela maioria? As flores exuberantes, como cabeças fora do corpo, exalam o despudor da morte; a vitória da morte sobre tudo que é matéria. Como são rubros os breves troféus. Como servem de consolo à razão sistemática, seguramente tola. Impermanentes, pouco a pouco, as cabeças, apartadas de seus corpos,  tornaram em fonte que seca de água, cadáveres desidratados.
E todos poderão apreciar, por estes dias, o vislumbre floral afogado em jarra cristalina. Poderão assistir, com prazer, o ruir das pétalas dia após dia, caindo mortas, descamando, como uma pele insubstituível: pelas brechas o vazio. Este, impiedoso, se camuflará na memória daquelas belas flores, transformando-as além do que jamais seriam, num acidente ilusório da mente humana.
E quando restarem apenas três pétalas cobrindo o cadáver, seria comum às pessoas lembrar a a vida, o pleno vigor do que é perecível. Talvez sorrisos sejam arrebatados da face dos algozes. Não subestimem o sarcasmo da memória. Muitos 'civilizados' reagem com ojeriza ao possível deleite da dama com seu colar de dentes humanos, ou talvez da surpresa que a mulher madura prega em seu marido, retirando da sacola de compras novos seios, macios e suculentos, cortados de uma mulher fresca e intocada. Os 'civilizados' detestarão imaginar o contente marido, apalpando os seios sangrentos, revelando mais uma vez o prazer que é a morte, colada em seu ventre, em movimentos frenéticos, até que sangue e sêmen se confundam no rosto da sua mulher madura, confusa e contente por unir vida e morte num só momento.
Os 'civilizados' não se julgam capazes de tais atrocidades. Estes não são os costumes publicados. É normal esmagar uma fruta em boca, contorcê-la, fazê-la sangra seu suco por entre os lábios e a garganta. Mastigá-la, com a carne abatida, salgada e sangrenta, quente, em uma fina churrascaria. É de inundar os lábios esse pedaço de vaca morta. Somos consumidores de vida e morte. De frangos jovens, abatidos, depenados e deglutidos aos risos por crianças num domingo à tarde. Por favor, não se engasguem com meu sarcasmo".

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Desperto do sono profundo. Observo as palmeiras, com suas copas dançantes,  seus frutos roxos: chacoalhando o silêncio.  São pinturas, emolduradas nesse cinturão de ferro e concreto: transbordam as nuvens e o céu.
Talvez pudesse tocar-lhes nos troncos, não estivesse eu na arrogância do primeiro andar. Estou aquém de suas palhas também: me julgo maior do que realmente sou.
Gostaria de ama-las, as palmeiras.  Mas sem me importar. Como as crianças e os inocentes querem ser irresponsáveis,  protestando pela liberdade. Confusos, ao mesmo tempo buscam e fogem do que são. São todos pinturas, em molduras de ferro e concreto, lhes escapam as nuvens e o céu. Queria aprender a ama-los, mas sem me importar.


O observador (microconto 5)