Devido ao post da minha namorada, resolvi colocar um texto meu que talvez acrescente algo à compreensão dessa "sociedade muito difícil". Esse texto foi o trabalho final da disciplina "Democracia e Direitos Humanos", ministrada pelo professor Luciano Oliveira, da UFPE. O texto tem um pouco mai de cinco páginas. Peço perdão a quem não tem tempo disponível para lê-lo completamente. Aos que podem ler, espero uma leitura crítica e comentários, ok?
Pretendo problematizar aqui uma discussão que considero das mais importantes relativas à atualidade da idéia de Direitos Humanos: Existem fatores que expliquem o fato de que os cidadãos estão dispostos a perder parte de sua relativa liberdade diante do Estado moderno em prol de um Estado mais punitivo, vigilante e severo em relação aos crimes, ou algo que represente segurança? Tenho consciência da infinitude de variáveis observáveis que são necessárias a uma resposta completa à questão levantada, além de que “cidadãos” é um termo bastante abrangente. Cada diferente cultura deve ajudar a moldar diferentes “porquês”; a cultura brasileira, no âmbito da política, é bem diferente da cultura inglesa, que, por sua vez, diverge da norte-americana.
Apesar da diversidade dos fatores a serem estudados, aqui pretendo me deter a apenas um; e este pode ser considerado geral entre as democracias do ocidente. Procurarei expor a evolução do conceito de liberdade nos ideais de democracia até a atualidade; de modo a encontrar na idéia de liberdade atual uma possível deturpação que explique a base dos comportamentos que se apresentam em vários países como o Brasil. Estes comportamentos podem ser sintetizados no abandono da razão sociológica em relação às causas da criminalidade – hipótese levantada no ensaio “Neo-nazismo e Neo-miséria”, escrito por Luciano Oliveira, professor da UFPE -, na hostilidade dos cidadãos “normais” para com os indivíduos que o mesmo professor chama de “excluídos”(indivíduos que não encontrar lugar na sociedade mesmo entre a casse dos explorados, dificultando a visão dualista de “exploradores versus explorados”) e na simpatia da sociedade, ou, ao menos, dos meios de comunicação de massas às medidas autoritárias que são propostas por segmentos reacionários da sociedade ao Estado.
Começando pela evolução da idéia de liberdade, trabalharei aqui com dois conceitos distintos da mesma: liberdade “positiva” e liberdade “negativa”; conceitos elaborados por Isaiah Berlin no livro “Quatro ensaios sobre a liberdade”. Estes conceitos são dicotômicos, ou seja, excludentes; a valorização de um diminui o valor do outro.
Como observa Sartori, a antiguidade clássica possuía uma noção de liberdade diferente da república. Na democracia grega pouco havia um Estado no sentido moderno do termo, pois os cidadãos se autogovernavam. A democracia direta proporcionava-lhes a liberdade política; eles detinham o poder de agir de acordo com seus interesses e moldar o governo: é que a democracia grega girava em torno da polis: “Tucídides definiu-a com três palavras: (...) os homens é que são a cidade” (Sartori, 94. P. 35). A polis representava a simbiose entre os homens e a política. Era uma democracia participativa. Os cidadãos tinham a liberdade de participar do jogo democrático, baseado, como em alguns casos, em sorteios para se eleger representantes. Governantes e governados interagiam face a face. Ou seja, na democracia direta, os cidadãos exerciam seu poder político; incorporavam a polis. A liberdade, para eles, resultava da possibilidade da ação.
Porém, para os gregos, não existia a distinção entre as esferas “pública” e “privada”. O Estado moderno consiste numa ordem que limita e controla o poder. Alguns fatos históricos, como os adventos do cristianismo, do humanismo e da Reforma Protestante trouxeram uma nova noção de indivíduo; noção esta que diferenciava o indivíduo do Estado. A idéia de propriedade privada ganhava corpo e ajudava a desenvolver um novo conceito de liberdade: a liberdade individual. Para Locke, o Estado deve garantir ao indivíduo o direito à propriedade privada; esta conquistada pelo trabalho. Porém, este mesmo autor considera livre apenas o indivíduo que se submete aos grilhões estatais.
É em Benjamin Constant que aparece pela primeira vez a discrepância das duas formas de liberdade individual expostas aqui: a liberdade do indivíduo restringida pelo Estado, e a liberdade do indivíduo de interagir com o Estado. Este autor “percebeu que o principal problema para os que desejam liberdade ‘negativa’ não é quem controla essa autoridade, mas sim, quanta autoridade é depositada naquele par de mãos” (Berlin, 97. P. 164). Agora fica mais fácil explicar a partir de Berlin dois distintos conceitos de liberdade: A liberdade “positiva” é a liberdade à grega, do indivíduo agir como sujeito do governo – de transformá-lo. A liberdade “negativa” consiste na liberdade individual em relação ao Estado opressor e controlador, é o primado do privado sobre o público: a luta pela autonomia do indivíduo.
Com o passar da história, os defensores da liberdade “negativa”; muitos dos idealizadores do liberalismo (defensores de que o indivíduo necessita gozar de uma liberdade mínima em relação ao Estado) difundiram suas idéias em torno das novas democracias que se formavam. O melhor exemplo a citar é o caso da constituição americana de 1787, que promulgava uma democracia indireta – representativa – como forma de governo. Os defensores dessa constituição ficaram conhecidos como “Os Federalistas”. Estes arcavam com a defesa do indivíduo em relação ao Estado de uma maneira assaz inovadora. A bandeira de luta contra a formação de facções, de partidos ou qualquer forma de associação política que pudesse gerar desigualdade, no sentido de que um grupo pode impor-se a outro: de que as maiorias podem solapar as minorias é a marca do federalismo. Uma de suas medidas mais intrigantes na defesa da liberdade “negativa” é a questão proposta por Madison, um dos legisladores da constituição federalista: “A ambição será incentivada para enfrentar a ambição. Os interesses pessoais serão associados aos direitos constitucionais” (“O Federalista”, n. 51). Essa solução de tom um tanto contra-intuitivo para o problema das facções tem como expectativa a neutralização das múltiplas vontades individuais; a “paz” gerada pela abundância da “guerra”: garantindo a liberdade das facções, a disputa maciça entre elas acabaria por neutralizar suas influências institucionais: não haveria uma facção tão poderosa a ponto de suplantar qualquer liberdade individual.
É mesmo sobre esta premissa federalista que surgem algumas das mais consistentes críticas à constituição de 1787, por parte dos “antifederalistas”: a ambição contraposta à ambição pode gerar uma guerra de opiniões que nem sempre se contorna facilmente. O sistema de “freios e contrapesos” pode ser degenerado, viciado, em caso do andamento das decisões públicas, que, ao evitarem a opressão, podem favorecer, em contrapartida, o “mútuo bloqueio” entre os poderes. Outra crítica era a que o governo representativo era de corte “aristocrático” e segregava o povo de seus representantes: admitia-lhes demasiada distância. Com isso, haveria o enfraquecimento da virtude cívica, e talvez acarretasse nos problemas trazidos à tona por Schumpeter: a relativa perda de liberdade “positiva” ou liberdade da ação através do primado da liberdade “negativa”.
Para Schumpeter, a democracia passa a sofrer uma grande baixa no sentido da atitude cívica graças à expansão do mercado e a reprodução ideológica (no sentido de inversão da consciência) da teoria democrática clássica. Esta crítica se emparelha com a crítica antifederalista acerca da segregação entre o indivíduo, o governado, e seus representantes, os governantes. Os homens passam a não mais discutir política no sentido mais racional, pois esta é excluída do seu conceito de liberdade (liberdade adquire o sentido de ser livre da intervenção do Estado, e não mais para a intervenção no Estado). Schumpeter ainda acrescenta que prevalece a liberdade individual, e, como é afirmado mesmo na literatura liberal, um povo que não participa arruína o esquema representativo como democracia.
As idéias de Schumpeter são elucidadoras da questão política atual. As críticas ao federalismo e ao liberalismo concretizam-se, na medida em que a participação do povo na política diminui. Hoje, a política diz respeito cada vez mais aos políticos e cada vez menos aos cidadãos.
Creio que a falta da participação do povo numa democracia, o que pode soar bastante cômico, embora seja trágico, pode influenciar a frágil razão sociológica que explica o crime. “Se os assuntos do governo dizem respeito ao governo, eles que tratem de ser eficazes! Eu já voto”. Esta e outras frases, que afirmam que o Estado deve agir de tal maneira ou de outra são bastante recorrentes no Brasil. A crítica é bastante presente, em detrimento da ação (liberdade “positiva”). Isso ligado ao “pavor” que as sociedades costumam ter do excluído, do inadaptado ao sistema, para usar um termo antropológico, produz qualquer forma imediatista de sanar os problemas sociais. As pessoas querem que o crime e as contradições sociais desapareçam num piscar de olhos, para que elas possam viver confortáveis a ilusão de uma democracia da qual elas não fazem parte. Ao menos no Brasil isso pode ser notado. A liberdade “negativa”, mal contextualizada, admite que cada indivíduo siga sua vida do jeito que quer, seguindo apenas à lei, e nada parece ser mais forte que essa lógica. Se um Estado punitivo, vigilante, violento ou exterminador se impõe como solução às contradições sociais, que seja! Este Estado, devem pensar as pessoas, punirá apenas os outros – os excluídos. É como se ouve muito nos bares, nas casas e reuniões de família: “Bom mesmo era na época da ditadura! Bandido não tinha vez!”.
Embora essa paixão pela ordem a qualquer preço possa ser muito bem explicada por Roberto daMatta, em “ Você sabe com quem está falando?”, creio que se encaixa nesse discurso reacionário um certo desprezo pelo direito humano de resistência à opressão. Talvez por uma ilusão cabal de que a opressão se restringe ao outro, a alguém que não é da família ou que não comunga dos valores da ordem. A razão sociológica não resiste a tantos argumentos emotivos; desaparece em casos como o do menino João Hélio, ou dos meninos da praça da Sé em São Paulo, como mostra Luciano Oliveira em seu ensaio “A cara a tapa”. A razão sociológica que vai buscar no seio das contradições sociais as causas do crime é planta que demora a ser colhida, portanto, ao menos a alguns segmentos da mídia, dispensável.
Referências Bibliográficas
· SARTORI, Giovanni. A Teoria da Democracia Revisada. Volume 2. São Paulo: Ática S.A, 1994.
· BERLIN, Isaiah. Quatro Ensaios Sobre a Liberdade. Brasília: Universidade de Brasília, 1997
· SCHUMPETER, Joseph. Socialismo e Democracia. Capítulo XXI.
· OLIVEIRA, Luciano. Neo-Miséria e Neo-Nazismo. Uma revisita à crítica à razão dualista. Revista Política Hoje. nº 4 e 5. Recife, 1995.
· Idem. “A cara à tapa”; ensaio mandado por e-mail aos alunos do curso de Democracia e Direitos Humanos.
quarta-feira, 12 de setembro de 2007
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16 comentários:
É sempre instrutivo, isso daqui. ^^
Já jogou The Sims? No começo, é sempre fácil e divertido ver como tudo sai bem, como tudo dá certo, quando você só tem o seu carinha, na casinha dele, sem amigos, sem emprego, com dinheiro, com as barrinhas todas no verde. Depois quando começa a aparecer mais gente, o dinheiro vai acabando, ele precisa sair pra trabalhar, arrumar a casa, as barrinahs vão todas ficando amarelas, depois vermelhas... aí fica um inferno.
Bom... a analogia meio besta diz (deveria dizer) respeito à sociedade e à liberdade: no começo, lá no início da democracia, a pollis, as assembléias gregas... tudo parecia ir perfeitamente bem. Mas eu acho muito difícil (pra não dizer impossível) continuar tudo perfeitamente bem quando a coisa vai crescendo e atinge o tamanho, as proporções e a loucura que tem hoje. Como você disse aí, passam a haver uma infinidade de fatores a serem considerados.
Ensaio brilhante, Raphinha, meu velho! Confesso que quando olhei, antes do almoço, me deu uma preguiça monstro de ler... mas quando eu comecei, fui indo e, de repente "oh, acabou já?". Congrats. ^^
Acredito que, 'positiva' ou 'negativa', a liberdade nunca chegará a todos, o tempo todo, em uma sociedade. O que dá uma puta margem pra debate, porque vão sempre haver pros e, principalmente, contras (principalmente não necessariamente por serem mais numerosos, mas por serem normalmente mais exaltados nas discussões).
Não gosto de reaclamar da nossa situação, seja política, seja com relação a liberdade, ou qualquer outra dessas questões que a gente vem debatendo ultimamente, porque as vejo como parte da sociedade que nós (mesmo que não eu ou você, mas ainda assim nós) criamos e a qual nós também deveremos forçar a evoluir.
Acredito² que uma melhor solução para uma questão como essas depende de tempo para apanhar bastante e, aprendendo com as surras, mudar para algo mais... mais maduro, por assim dizer. Apanhar acho que já apanhamos bastante, ao longo de milhares de anos... Resta amadurecer (continuar a amadurecer). Mas também não se amadurece da noite pro dia.
como já era de se esperar, falou o espírita no penúltimo parágrafo. ^^
concordo, marquitos. Obrigado por ler ^^
=P
por nada ;)~
É, Marcolino. É como o post da minha namorada disse. Tá difícil encontrar leitores... =P
Ou as pessoas estão ocupadas demais, ou não têm coragem de encarar um texto com mais de uma página. É uma pena.
Grande pena... Às vezes dá até a impressão de trabalho jogado fora... mas não é não, pode ter certeza. O mundo agrade, doc. ^^
by the way, tirei 10 nesse trabalho. ^^'
lol!!!!
That's my booooy ;D
Sabe qual foi uma das respostas da minha prova de hoje? Que o estado, assim como a Vale, é privatizado e só atende a interesses de parcelas, não sendo, por isso, um estado verdadeiro. Ler, então, sobre a noção de liberdade para a sociedade greco-romana me deixou mais feliz... "pois os cidadãos se autogovernavam".
Cadê essa tal de liberdade-positiva hoje? Por que não nos ensinam essas coisas na escola? Será que todo mundo vai precisar fazer sociologia para ver como essa liberdade individual é mesquinha?
Eita, mundo sem jeito... ¬¬'
(E eu vou guardar pro resto da minha vida essa idéia de liberdade-positiva!)
Ah! Esqueci de te dar: Parabéééééns, Meu-namorado-esperto-pra-danar! Você me disse que tirou 10 nessa prova ou eu só esqueci, como de praxe? Que ótimo!!! =D
Como na etnografia, eu achei estranho a pessoalidade do começo, mas todo o restante ficou tããão interessante que eu tive verdadeira vontade de estudar isso também. ^^
Ahhh... você é lindo! Te Amo! :**
Ps: O "ótimo" não foi porque eu esqueci o que você me disse como de praxe eu esqueço. Só pra constar, tá? ^^
"...Liberdade, essa palavra
que o sonho humano alimenta
que não há ninguém que explique
e ninguém que não entenda..."
(Romanceiro da Inconfidência)
lol ;D é, né?
Tenho mais algumas coisinhas sosbre liberdade... ;D
você me deixou sem graça com essa declaração... ^^'
;*
Só agora eu percebi a ironia do título desse post: "Mini-ensaio".
Hahahaha! ^^
Ta massa o texto o.o
Ahh, mas veja só. A liberdade negativa, se vc tirar a parte " liberdade individual ", fica igualzinha com uma ditadura. Só vai diferenciar quem é que governa essa ditadura xDD. Veio, imagina que vc falou sobre os federalistas e anti-federalistas. Agora, eles tiveram vantagem lá em cima, pq eles já tinham a cultura de saber do que se passa em seu governo, dependendo ou não do que eles vão receber em troca. Agora, nós alem de termos começado de modo ruim, como colonia, quando fomos partir pra avançar um pouquinho nossas cabeças ( isso em relação a 50 anos atras, soh pra comparar entre o inicio dos EUA e nós xD ) não tivemos a chance tanto social ( nosso povo ainda sofre por não ter " vontade " de participar do governo. ) quanto economica ( Jucelino indo pra cova xD ).
Porra, tu falou muito bem ali no penultimo paragrafo. Nem tem o que comentar, ta certa a ideia o/.
Muito bom mesmo, Nota 9.5 ( pq ninguem é perfeito xDDD. Sou mal, neh ? xDDD)
Flw veio o/
eahiuaehiuaehaeihiauehea
o professor me deu 10, seu nojento!hiweuahaiuhiuhiiueahiauaieuhueahiuhae
Vê, eu usei esse argumento que vc usou aí no texto tbm. principalmente quando falo de roberto damatta. ^^
é difícil mesmo. mas, como mostrou schumpeter, essa cultura de sabe ro que anda acontecendo não é la tão firme quanto nós, de cá, pensamos. há uma crise política no mundo de maneira geral. é preciso fazer alguma coisa. ;D
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