Sombra: Pelo adiamento perpétuo da traição resolvi viver. Enaltecer as virtudes de tudo que há. Reconhecer minha maldade e sabê-la minha. Cuidar para que nunca chegue o momento da minha traição a mim. De todo conhecimento dos sábios, se pudesse contribuir com mais uma página... Minha vida valeria a pena.
Luz: Pobre homem. Vão em seus pensamentos. Domesticado és pelos deuses que te põem tais virtudes. Perturbado és pela idéia do infinito, da continuidade. Não vês que as virtudes não te pertencem? Que é justo por saberes que trairás, que te negas, inventando a estupidez da perpetuação? Nunca serás eterno, pobre ser. Venho-te trazer a verdade: tudo isso não passa de um sonho de deuses. Tua vida é a carne, e eis tua sacralidade. Aprende a reconhecer-te.
A vida humana é a melhor de todas as vidas. Não és escravo de virtudes, delas não necessitas. És selvagem, pulsante e forte. Todas as virtudes não te garantem o eterno, e sempre estás a um passo de pôr toda tua moral a perder. Tens o prazer. Por que escolhes a virtude, ascética, se podes beber, comer, escravizar outros? Tens o que muitos deuses almejam, esfomeados; o desejo. Tudo em ti é essa busca tão maravilhosa: estás acima de tuas virtudes inventadas: aceita o que és e busca o prazer que há nisso tudo.
Sombra: Ora, não seria o desejo, a capacidade de ter prazer, uma virtude? Como poderia o homem estar a salvo disso? Queres dizer que minha grande virtude é desejar, ao ponto de trair a mim, de buscar o prazer em tudo quanto posso. Pedes que me conforme com apenas isso? É justo por que minha virtude é o desejo, que não posso cessar de desejar mais.
Luz: Teu desejo, homem, só trai teus sonhos, tua moral. Respeita essa traição e segue-a sem medo. Goza tudo que há.
Sombra: Meus sonhos também são fruto desse desejo. Admito contradição, mas não posso ser apenas uma traição. Posso até gozar de tudo que há. Mas quem garante que isso saciaria meu desejo, que me daria paz de espírito?
Luz: Tolo! Paz de espírito. Não se consegue tal coisa. Teu desejo é fruto desse tormento? Da vida ser tempo e do tempo aproximar cada vez mais tua traição a ti? Quando juras, já estás a trair-te. Como podes esquecer que és tempo e finitude? Assim são teus sonhos e tua vida: tudo em ti morre como flor em tempestade.
Sombra: Que maneira estranha de enxergar a permanência. As flores são levadas pelos furacões, mas não cessam de nascer nos vastos vales. A cada chuva se morre, mas também se vive. Por que valorizas mais a morte do que a vida? Dizes que traio a mim quando evito a traição. Traio a mim quando crio, por meu desejo, e vou além dele. Se me mostras uma metade do mundo e clamas que devo renunciar à propria natureza do que parte do meu desejo gera, não posso aceitar. Eu quero o mundo completo. Por vezes, ouvir tua voz, trair-me, é a solução para esse desejo tão supremo, tão ardil. Não vês que és apenas parte, parte desse meu jogo de desejos incessantes?
Luz: Falas como se tivesses que permanecer à parte do mundo, sem tomá-lo completamente. Apenas guardas este mundo como um pedaço de chocolate para depois. Apenas para explodir o saciar dos desejos num momento à frente. Continua crendo que sou mera parte de ti. Logo terás o que mereces.
Sombra: Se me traio, triste estou. No gozo, regojizo. Na moral, sofro. Parece simples. Mas, muitas vezes, por ter o mais podre dos desejos, por sabê-lo meu, posso evitá-lo. Posso superar minhas imperfeições. Mas, no fundo, isso não faz sentido se sou solitário no mundo. Eis a nossa diferença. Posso estar preso às virtudes, coisa de deuses, como supões. Posso desejar e segundos depois trair o mesmo desejo. Posso despedaçar meus sonhos, e não deixo de ter outros. Sei que não vives por mim, e que te dói a afirmação de que és mera parte. Perdão. Tua presença é o real motivo de minhas cogitações. Não entendo mais o rumo dessa conversa. Como podes tu, Luz, desejar de mim outra coisa, que não tuas verdades? Queres tanto assim ser como eu?
Luz: (...) Queres tanto assim ser como eu?
Sombra e Luz: O que somos nós, afinal?
*Diálogo inspirado em parte das obras de Nietzsche e Levinas.
sexta-feira, 25 de dezembro de 2009
sábado, 19 de dezembro de 2009
Que me faltem palavras neste dia quente.
O que o coração toca, a alma sente:
Desvairados sonhos no presente:
Como nuvem passeando
Num céu que vem dos olhos.
Hoje é a sensação, a confusão de um gozo,
A luz e a treva a trocar máscaras de ilusão.
O rio que corta a terra sou eu.
Doces memórias do que não cessa de acontecer:
Doce porvir da inalterância;
O intransponível, o indizível, o incontemplável:
É quem possui meu coração, quem minha alma sente.
É a imensidão da vida latente;
Tamanha é a força criadora
Que essas palavras maldizem.
O homem é como a água doce:
Nasce da terra e do céu,
Desce das montanhas,
Cresce em seu caminho
E desaparece como brisa no vento,
Como o rio no mar.
À morte, brindemos.
O que o coração toca, a alma sente:
Desvairados sonhos no presente:
Como nuvem passeando
Num céu que vem dos olhos.
Hoje é a sensação, a confusão de um gozo,
A luz e a treva a trocar máscaras de ilusão.
O rio que corta a terra sou eu.
Doces memórias do que não cessa de acontecer:
Doce porvir da inalterância;
O intransponível, o indizível, o incontemplável:
É quem possui meu coração, quem minha alma sente.
É a imensidão da vida latente;
Tamanha é a força criadora
Que essas palavras maldizem.
O homem é como a água doce:
Nasce da terra e do céu,
Desce das montanhas,
Cresce em seu caminho
E desaparece como brisa no vento,
Como o rio no mar.
À morte, brindemos.
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