quarta-feira, 12 de agosto de 2009


II
Nós, no ocidente, somos marcados por vários mitos. Dificilmente conseguiríamos resgatar a fundo nossos pressupostos. Brinco com a ata. Quero quebrar a sequência numérica e ver o que acontece: escrevo 17 abaixo do 18, número de quem assinou a ata antes. O colega do meu lado, que não notou, repetiu o 18, reforçando a sequência lógica. Poderoso esse mito da ordem numérica crescente, não? Chega de brincadeira. Mito de Igino, do homem húmus. Belo mito. Esqueci algumas coisas, infelizmente. Tudo que sei é o final: o homem, na morte, tem sua alma devolvida a Apolo, seu corpo devolvido à terra e... Em vida, ele pertence a “Cuidado”. Esse foi o acordo de Zeus. Os núcleos ético-míticos, de que nos diz Paul Ricoeur, são justamente esses estoques morais, valorativos, que nos balizam. Por exemplo, a pergunta tida como de origem grega “o que é isto?” não é compartilhada por todas as culturas. Os tupis, por exemplo, partiam para a experiência, para o contato com os objetos desconhecidos. Por outro lado, entre os nativos brasileiros, era possível observar um forte cuidado com o estranho, estrangeiro. De um jogo de perguntas cuja resposta já é sabida, mas que se deixaria o próprio estrangeiro confirmar. Seriam constatações óbvias, do tipo: “Chegaste? Dormiste? Comeste? Defecaste?”. Questões essas que marcariam o controle da tribo sobre aquele estranho, que poderia trazer doenças. Ora, se nós mesmos não praticamos esse jogo de perguntas hoje em dia. Minha mãe, minha avó, quase sempre perguntam, quando me veem chegar: - Chegou? -. Resquícios de um núcleo ético-mítico hibridizado de forma violenta? Rituais, no sentido sociológico, práticas cotidianas esvaziadas de seu sentido original?
O mito da odisseia. Com este, foi feito um paralelo com a leitura da psicanálise e um preâmbulo do conceito de razão instrumental da Escola de Frankfurt. Desenhou-se a ilha e o mar no quadro, sendo a ilha a consciência e o mar o inconsciente. Por um motivo, Ulisses sai da ilha, busca, fora de si, a reafirmação da identidade (a alergia ocidental, de não saber conviver com a diferença). Ele enfrenta diversos monstros e situações conflituosas, que vence a partir da perspicácia da razão, da técnica, da esperteza. Vê seus homens caírem no êxtase (fora de si), virarem animais. Amarra-se ao mastro para suportar o canto das sereias. Depois, volta à ilha, e esse retorno é característico do pensamento identitário. Retoma o poder na ilha, casa-se com a mulher que tanto o esperara. Dominou todas as adversidades, todos os medos, todas as alteridades, o estranho, inimaginável. Eis aí o mito da razão dominadora, a metafísica da técnica, cuja motivação está marcada pelo medo, medo no encontro com o diferente, com o que não é o si mesmo. Este ponto foi entendido pela Escola de Frankfurt. O êxtase, a existência nos impulsiona para fora de nós mesmos. O próprio tempo parece ser o senhor desse movimento, o que nos faz afirmar, talvez a partir de Heidegger, que o homem ex-iste, não é. E o movimento da razão pode ser perigoso na medida em que traz para dentro, que pode negar o ser. A difícil aceitação da vulnerabilidade humana, a kriptonita, é problemática, principalmente para Nietzsche, que ataca este ponto. Concluindo, o mito grego revela-se na autonomia, no ser, na identidade.
Já no mito de Abraão, fica clara uma heteronomia. O ser humano é criatura que, por ordem do seu criador, também é posta para fora de si. Aqui, a lei sobrepõe o ego. Da mesma forma, a criatura é um peregrino, que sai e não retorna, não se conclui na própria lógica da identidade. A busca, como nos mostra bem o filme, é pela terra prometida (sentido). Esta busca, guiada pela Lei, nos leva ao choque com o diverso. Como no filme, ao aparentar ter-se encontrado a terra prometida, cai-se em contato com outra tribo. Ao invés de desafiá-los pela terra boa (como queria o seu sobrinho, que representa a lógica da quantificação, do poder), Abrão se desculpa pela invasão e continua sua jornada. Isso representa a ética, o que se faz no contato com a diferença. Aqui, a diferença não é subjugada e assimilada. A diferença é posta pelo crivo da relação, segundo a Lei de Javé, ou, o inominável. Interessante, pois, nomear é trazer para si. É posse virtual: ego-onto-logos. O maior perigo para esse mito é a idolatria, que também egologiza, idolatra, objetifica. A defesa de algo superior ao ego pode ser a de um ego em identidade com esse algo superior, desejoso de suplantar o outro, o diferente. Como Levinas enfatiza, somos seres heterônomos, limitados tão logo pelo próprio corpo, uma das nossas primeiras alteridades. Vamos ao mito do Buda.
O príncipe Sidarta viveu no mesmo período que outros grandes filósofos, como Lao-Tsé e Heráclito. Sidarta vivia uma vida feliz num palácio, mas sem contato com a vida exterior. Quando fugiu para passear fora do palácio, vivenciou as três marcas da impermanência: um homem velho que só andava apoiado ao bastão, um moribundo que sofria de imensas dores de uma doença interna e um cadáver. A velhice, a doença e a morte, as três marcas da impermanência abalaram-no profundamente. Sua quarta visão, a caminho do palácio, um eremita errante e sereno, transbordando paz. Gautama então resolveu abandonar a vida de comodidade e ir em busca da verdade. Jejuou, viveu o ascetismo, abandonou tais modelos e continuou com a busca. Prostrou-se, depois de muito viajar, diante de uma figueira e decidiu não sair de lá até alcançar sua iluminação. Em 49 dias, construiu, em meditação, a sua iluminação. Transcendeu ao Samsara (humano preso ao sofrimento) e tornou-se Buda. Dedicou o resto de sua vida à peregrinação e ao ensino a todos os seres, ajudando a construir, em toda a Índia, comunidades monásticas. Segundo um site1, suas últimas palavras foram:
“A decadência é inerente a todas as coisas compostas. Vivei fazendo de vós mesmos a vossa ilha, convertendo-vos no vosso refúgio. Trabalhai com diligência para alcançar a vossa Iluminação”.
Lembro-me de ler um livro de artes marciais de Roque Severino e ouvido a mesma coisa do professor na aula. As 4 nobres verdades. O sofrimento existe. O sofrimento é causado pelo apego, pela sede, pelo desejo conspícuo. O sofrimento pode ser superado. Existe um caminho para superar o sofrimento, o caminho do meio, a Octuple Nobre Senda. Os oito passos. O que, talvez, para nós, seja importante frisar aqui; a importância da existência do sofrimento humano, de afirma-la. Na aula, se falou do dedo e da lua. Há alguém que aponta a lua. Há pessoas que olham o dedo, e outras olham para onde aponta o dedo. Creio que este seja um grande ensinamento para a academia, na medida em que muitos de nós estamos presos ao que F. Vandembergue chamou de “o fetiche do método”. Podemos ver, a partir dos mitos, que a verdade última da existência nunca será um conceito, teoria ou o que quer que seja. Essas alegorias, todas de um saber profundo, transmitem uma mensagem que escapa à palavra quando se tenta expressar denotativamente. Como Heidegger, sugere, passemos à poesia e ao silêncio:
“Se eu faço unicamente o meu e tu o teu
Corremos o risco de perdemos
Um ao outro e a nós mesmos”
F. S. Perls.

“Com que sonho? Não sei bem não.
Talvez com me bastar feliz Conheci a beleza que não morre
- Ah, feliz como jamais fui!-, e fiquei triste. Como quem da serra
arrancando do coração mais alta que haja, olhando aos pés a terra
- arrancando pela raíz- vê tudo a matar, nau ou torre.
este anseio infinito e vão Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre;
de possuir o que me possui.” assim eu vi o mundo e o que ele encerra.
-Manuel Bandeira. Perder a cor, bem como a nuvem que erra
ao por do sol e sobre o mar discorre.
Pedindo à forma, em vão, a idéia pura,
tropeço, em sombras, na matéria dura,
e encontro a imperfeição de quanto existe.
Recebi o batismo dos poetas,
e assentando entre as formas incompletas,
para sempre fiquei pálido e triste.
-Antero de Quental.
1http://www.brazilsite.com.br/religiao/budismo/bud02.htm